6.4.16

as asas dos filhos


quando antecipamos o voo
antes de terminado o tempo
da aprendizagem das asas
a euforia pela nova liberdade
pode ser amortecida
pela ira dos ventos contrários

se cedo nos atiramos ao mundo
cedo o mundo se atira a nós
e o cansaço acaba por chegar
antes do tempo do descanso

um cansaço tamanho
que nem encontramos memória
do caminho até ele

e cedo
-demasiado cedo-
a vontade de recolher as asas e enrolar o corpo
nos novelos com que fizemos
o derradeiro ninho

um ninho seguro e redentor
feito de abraços maternais
e colos a segurar voos
que não se querem apressados

sabemos que não conseguimos preparar o coração
para os voos dos nossos filhos
porque também eles nos são colo e abraços
e guardam a nossa alma à superfície da pele
onde sentem o ar que lhes faz crescer as asas

é imenso o esforço imensa a ternura
incondicional o amor
com que inventamos planos de voo
planos de sorrisos
planos de ausência de dor

não temos garantias e isso é
totalmente irrelevante
porque os filhos são promessas do universo
e nele se vão cumprir
nós somos apenas grandes braços
que se desdobram em mãos de amparo

um dia partem
como nós partimos
e ainda assim vão ficar
como nós ficámos

só os filhos são capazes de ir
e ao mesmo tempo

ficar

Rosário Ferreira Alves
in lunaris, Poética Edições 2016

2 comentários:

Graça Pires disse...

"sabemos que não conseguimos preparar o coração
para os voos dos nossos filhos
porque também eles nos são colo e abraços"...
É tão carinhoso este teu poema, amiga.
Um grande beijo.

Manuel Veiga disse...

partem e nós ficamos presos.

um poema e um livro notáveis.

beijo