6.4.16

as asas dos filhos


quando antecipamos o voo
antes de terminado o tempo
da aprendizagem das asas
a euforia pela nova liberdade
pode ser amortecida
pela ira dos ventos contrários

se cedo nos atiramos ao mundo
cedo o mundo se atira a nós
e o cansaço acaba por chegar
antes do tempo do descanso

um cansaço tamanho
que nem encontramos memória
do caminho até ele

e cedo
-demasiado cedo-
a vontade de recolher as asas e enrolar o corpo
nos novelos com que fizemos
o derradeiro ninho

um ninho seguro e redentor
feito de abraços maternais
e colos a segurar voos
que não se querem apressados

sabemos que não conseguimos preparar o coração
para os voos dos nossos filhos
porque também eles nos são colo e abraços
e guardam a nossa alma à superfície da pele
onde sentem o ar que lhes faz crescer as asas

é imenso o esforço imensa a ternura
incondicional o amor
com que inventamos planos de voo
planos de sorrisos
planos de ausência de dor

não temos garantias e isso é
totalmente irrelevante
porque os filhos são promessas do universo
e nele se vão cumprir
nós somos apenas grandes braços
que se desdobram em mãos de amparo

um dia partem
como nós partimos
e ainda assim vão ficar
como nós ficámos

só os filhos são capazes de ir
e ao mesmo tempo

ficar

Rosário Ferreira Alves
in lunaris, Poética Edições 2016

18.3.16

lunaris


Mais um encontro de afectos, com a colaboração de duas das pessoas que mais admiro: 
a Virgínia do Carmo e a Graça Pires.

Grata a ambas e à Poética por continuar a acreditar na minha escrita.

Sintam-se à vontade para aparecer! Antecipadamente, grata a tod@s.




5.6.15

o medo



imaginamos sinais de orvalho nas manhãs que emergem
das noites mais quentes e secas
do estio da nossa alma
antecipamos caminhos largos e floridos
nas placas cimentadas do chão
onde nos pregamos aos pés

e pedimos ao sol que trespasse
as densas nuvens do nosso inverno
interno

a cada tempo queremos um outro tempo
em cada espaço suspiramos por outro espaço
e nas mãos de hoje vemos apenas
a saudade dos toques de ontem
a ânsia pelos gestos de amanhã
e as marcas dos momentos que não vimos passar

fechamos as janelas ao medo como se ele tivesse saído
para passear os cães que nos guardam as portas

na recusa de vermos que moramos numa casa
feita de pele
sem portas nem janelas
inalamos o ar rarefeito no conforto aveludado de todas as coisas
exteriores a nós
e exteriores ao nosso medo

mas o medo é um gato preto e manso
que se deita no nosso ombro esquerdo
à espera de um afago
para se poder cumprir

e quando o medo se cumpre
o medo
não mete medo algum

temos por baixo da pele uma vida feita de instantes
ausências esperas
dores angústias
risos prazeres
instantes de corpo de alma

e de afagos
ao nosso medo preto
no olhar branco do nosso gato
manso


Rosário Ferreira Alves

não foi este o tempo que pedi


bastava-me uma réstia de sol
na ombreira de uma porta habitada
um pouco de mar calmo e
compassivo
e um sopro respirável à luz
de um instante de sossego

não era mais deste sal a escorrer
da nascente onde a água se quer doce
e a corroer as pedras angulares
com que havia de reconstruir as margens
do sonho antes da ruína
do sonho antes da partida

se era para ficar
que houvesse um outro caminho
alto amplo e luminoso
por onde pudesse planar na contemplação
da vida a acontecer

mas se é para ser assim raso o caminho tão raso
que se engrandeça o coração
para lá guardar as asas a esperança
e a paz


Rosário Ferreira Alves
[Maio 2015]

11.4.15

pausa



preciso apenas de uns centímetros
deste tempo a meio do tempo
e de um pouco de sol na ombreira
dessa porta aberta para a partida

de encostar a cabeça no peito da manhã
e receber no colo a luz
do sol como um filho
que se embala nos braços para sempre

preciso apenas de uma pausa
para o cansaço
para que ele se demore o quanto
tem para demorar

o exacto tempo da gestação
de asas mais fortes e poderosas
do que o peso das pedras nos bolsos
do passado.


Rosário Ferreira Alves


16.12.14

a última pedra da calçada

não nos é dado saber qual a última
pedra da calçada
nem a dimensão do caminho

tudo o que sabemos é
um pé
sobre a pedra
que acabámos de pisar

irrevogavelmente


Rosário Ferreira Alves

9.12.14

o desenho lento das partidas


em cada mão o desenho lento
das partidas
duas
porque parto assim que chego e
depois

só não parto
se nos teus olhos as minhas mãos
fico
só não parto se nas tuas mãos
os meus dedos impedidos
de seguir as rotas remendadas
ontem

só não parto
se no fundo da tua voz algum trémulo silêncio
aflorar nos teus lábios uma linha hesitante de
palavras por dizer
a quente
hoje

se no frio da despedida um instante

nada

se algum intenso nada me travar o pé
na beira da cama
morna
da manhã
amanhã

em cada mão o desenho súbito
das chegadas
antes

do tempo



Rosário Ferreira Alves

7.12.14



nas unhas a terra
dos carreiros rasgados
a medo
e no peito restos de
pássaros embalsamados

mostro-te a minha dor para que não tropeces
nos meus passos
mostro-te a minha dor para que não me caias
no lugar da paixão

não te peço que fiques
nem te peço que vás
mas sei

somos nós o fruto que havemos de colher
somos nós a luz que sonhamos acender

que nenhuma angústia nos devolve a claridade
de uma noite sem luar

e as perguntas hão de arder nos incêndios que inventamos
para derreter o frio

e é sujo escasso e escuro o caminho gelado da incerteza quando
estamos sós

até

que nos habituamos a estar sós

mas não te digo




Rosário Ferreira Alves

18.8.14

azul

                                       [aguarela: Maria Caroço]                                       


disse-te da janela que nunca abri
que não buscasses o entardecer
na sombra desse rio
e tu foste arrastar as montanhas
que se acumulavam sob a água
com esses dedos peregrinos
caminheiros da madrugada

disse-te baixinho num grito entaipado
que as tardes não chegam
a abandonar o mar
não navegam em sentido contrário
ao curso da água doce
que me atravessa a garganta
e que as árvores me amanhecem
do lado de dentro dos olhos
do lado de dentro das portadas
que mantenho fechadas

mas
há sempre um caminho que regressa
à luz que se ergue do sol
para o interior das nossas mãos
                                                 em ondas de azul

Rosário Alves

5.7.14

das flores conheço o sorriso




das flores conheço o sorriso
e o palpitar das folhas quando
leve a minha mão
a desaguar amor na margem
das pétalas

das pedras a suavidade 
na polpa dos dedos
poisados na nascente que escorre vida
para o fundo da vida
inesgotável corrente a pingar o silêncio
de beijos repetidos

do amor meu amor
que é feito
de mãos nas flores
de dedos na água
de pétalas efémeras
e nascentes eternas

e
da verticalidade com que caímos
no doce leito das pedras
antes de
horizontais
seguirmos
o caminho dos mares

Rosário Ferreira Alves